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Da “maldição de Cam” à Teologia da Libertação

  • Foto do escritor: Claudio Moura Neto
    Claudio Moura Neto
  • 17 de set.
  • 3 min de leitura

Da “maldição de Cam” à Teologia da Libertação: como a Bíblia foi usada para legitimar a escravidão dos negros e hoje inspira liberdade


A Bíblia é um dos livros mais lidos da história da humanidade. Mas também é um dos mais manipulados. Até o século XIX, colonizadores e senhores de escravos usaram passagens específicas das Escrituras para construir uma teologia escravocrata, conhecida como a “teoria da maldição de Cam”. Hoje, os mesmos textos são relidos pelo povo negro oprimido como fonte de dignidade, resistência e libertação.



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1. A maldição de Cam segundo a teologia escravocrata


A base dessa teologia está em Gênesis 9:20–27:


“Maldito seja Canaã! Servo dos servos será de seus irmãos.”




Embora o texto diga claramente que a maldição recai sobre Canaã, filho de Cam, a tradição escravocrata passou a ensinar que Cam inteiro — e por extensão, todos os africanos — foram amaldiçoados a viver em servidão. Essa foi a distorção central que justificou o tráfico e a escravidão racial moderna.


Outras passagens reforçaram esse discurso:


Gênesis 10:6–7: apresenta Cam como pai de povos como Cuxe e Mizraim, associados ao Egito e à Etiópia. Isso foi usado para vincular a “maldição” ao continente africano.


Efésios 6:5:


“Servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne…”

Essa exortação, pensada para comunidades cristãs minoritárias do século I, foi aplicada de forma literal aos escravizados africanos, exigindo submissão sem questionamento.




Colossenses 3:22:


“Servos, obedecei em tudo a vossos senhores…”

Outra passagem usada isoladamente para reforçar a obediência cega.




Filemom 12: quando Paulo envia Onésimo de volta ao seu senhor, era lido como legitimação do retorno do fugitivo — sem considerar que Paulo pede para recebê-lo “não mais como escravo, mas como irmão amado” (Fm 16).



Combinando essas leituras, construiu-se a ideia de que a escravidão dos negros não era apenas social ou econômica, mas vontade de Deus, escrita nas páginas da Bíblia. Essa foi a “teologia de Cam” que sustentou séculos de violência.



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2. A releitura libertadora: da opressão à esperança


Se a mesma Bíblia foi usada para aprisionar, foi também ela que acendeu a chama da resistência. Povos escravizados leram outras passagens e descobriram um Deus que ouve o clamor dos oprimidos e luta pela liberdade:


Êxodo 3:7–8:


“Tenho visto atentamente a aflição do meu povo… desci para livrá-los da mão dos egípcios.”

O Êxodo se tornou paradigma da libertação, inspirando cânticos, hinos e quilombos.




Isaías 58:6:


“Porventura não é este o jejum que escolhi: soltar as ligaduras da impiedade, desfazer as ataduras do jugo e deixar livres os quebrantados?”

A verdadeira religião, segundo os profetas, é romper correntes de opressão.




Lucas 4:18–19:


“O Espírito do Senhor está sobre mim… enviou-me para proclamar libertação aos cativos.”

Jesus inaugura seu ministério com uma mensagem que ecoa diretamente a experiência do escravizado.




Gálatas 3:28:


“Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”

Aqui está a semente do fim de toda hierarquia que sustenta a opressão.






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3. A Teologia da Libertação negra


A partir do século XX, teólogos e líderes negros reinterpretaram a Bíblia a partir da perspectiva dos oprimidos. Esse movimento recebeu o nome de Teologia da Libertação (na América Latina) e Black Theology (nos EUA). Seu princípio é simples:


Deus não legitima correntes.


Cristo não santifica a escravidão.


O Espírito sopra para libertar e não para prender.



Essa releitura transformou a Bíblia em arma espiritual de emancipação, denunciando a injustiça racial e social, e anunciando um Deus que está do lado dos que lutam por vida plena.



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Conclusão


A chamada “maldição de Cam” nunca foi uma sentença divina sobre os povos africanos. Foi uma leitura fabricada para justificar um sistema violento. A Bíblia, quando lida com honestidade, sempre falou de libertação: do Êxodo ao Cristo, da promessa dos profetas à comunidade cristã que aboliu as barreiras entre senhor e servo.


Hoje, os mesmos negros antes escravizados encontram nas Escrituras não o selo da sua prisão, mas a voz do Deus que liberta:


“Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32).


 
 
 

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